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O início de uma reforma do processo administrativo fiscal federal (JOTA)

O início de uma reforma do processo administrativo fiscal federal

As fragilidades do Carf devem ser superadas, e não usadas como mote para a sua substituição por um novo órgão

Desde a operação Zelotes o Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (Carf) tem sido objeto de recorrentes análises e reflexões. Com a mudança de governo e a oportunidade de reforma tributária sugerida pelos atuais Ministro da Economia e Secretário da Receita Federal[1], os debates em torno do tribunal administrativo voltaram a se intensificar.

Nos últimos meses, por exemplo, ganharam destaque os modelos apresentados pelo ex-secretário da Receita Federal, Everardo Maciel, e pelo Sindifisco, que têm em comum a atribuição da competência decisória a turmas de julgamento compostas apenas por servidores concursados, em substituição ao atual modelo paritário.

Na estrutura proposta pelo Sindifisco, as autuações e defesas administrativas seriam apreciadas em duas instâncias, uma de julgamento e uma de uniformização, ambas vinculadas à Receita Federal.

São soluções que aparentemente pressupõem o diagnóstico de que o Carf, na forma como atualmente estruturado e atuante, é a causa do problema a ser enfrentado, do que discordamos.

Não é preciso muitas digressões para afirmarmos que o Brasil possui um sistema processual e tributário disfuncional e sem coesão, marcado por grau de complexidade tão elevado que nos coloca como campeões em ranking divulgado pelas universidades alemãs LMU Munich e Universität Paderborn, em comparação a outros 99 países.

Essa constante tensão é bem ilustrada pela figura da maldição do lançamento por homologação, usando a feliz construção de Eurico de Santi[2].

Nela, a responsabilidade pela interpretação primária da legislação tributária é transferida ao contribuinte, que apura, declara e antecipa o pagamento do tributo, sem contar com critérios claros e detalhados sobre o entendimento do Fisco.

O Fisco, por sua vez, terá o prazo de cinco anos para buscar novas interpretações que aumentem a arrecadação e então realizar o lançamento de ofício, acrescendo-o com penalidades (inclusive a multa qualificada). O estímulo ao litígio é claro.

O contribuinte também encontra incentivos para litigar: primeiro porque, com a impugnação, suspende de modo automático a exigibilidade do crédito tributário; segundo, sendo plausível sua interpretação, sabe ser real a chance de, em anos ou décadas, vê-la prevalecer na jurisprudência – e não litigar poderia colocá-lo em desvantagem com seus concorrentes; por fim, mesmo sabendo ter poucas chances, muitas vezes opta por defender-se e aguardar um novo Refis.

Nessa perspectiva, a relação entre Fisco e contribuinte se estabelece em um ciclo interdependente e contínuo de litigiosidade, como as drawing hands de Maurits Esher.

O estoque de 122.371 processos em tramitação, correspondentes a cerca de R$ 603,7 bilhões em crédito tributário, não é causado pelo Carf[3], mas sim por esse conjunto ordenado de etapas das quais ele faz parte apenas como arena final de debate na esfera administrativa.

O Carf em sua longa história se mostra um órgão vocacionado, que permite uma revisão técnica e paritária dos atos administrativos e, consequentemente, a redução do estoque de processos judiciais[4] e o atendimento ao contraditório e à ampla defesa, com todos os meios e recursos inerentes a essas garantias.

Deve, então, ser colocado em evidência não em razão de suas fragilidades (que, certamente, também precisam ser discutidas, corrigidas e superadas), mas sim para que o atual modelo permeado de incentivos ao litígio possa ser alterado, reconhecendo-se a importância do tribunal administrativo enquanto órgão técnico e especializado que depura o crédito tributário e lança luzes para Fisco e contribuintes sobre a melhor interpretação da legislação.

Este breve artigo lança algumas ideias que serão pensadas ao longo dos próximos meses no âmbito do projeto Macrovisão do Crédito Tributário, do Núcleo de Estudos Fiscais da FGV Direito SP.

Incentivos à conformidade e fortalecimento do Carf: um modelo possível e desejável

  • Um novo papel para as DRJs e instituição de um programa de conformidade

Reconhecida a importância do tribunal administrativo em seu formato atual, um modelo desejável de PAF aliaria a atividade decisória do Carf às diretrizes estabelecidas pela OCDE. Dentre tais medidas, que a Receita Federal sinaliza como integrantes de sua pauta, pode-se mencionar como exemplo a Consulta Pública RFB nº 04/2018, que traz o esboço do Programa de Estímulo à Conformidade Tributária (“Pró-Conformidade”).

Nesse novo cenário, as DRJs seriam transformadas em órgãos de controle prévio do lançamento tributário, com estímulo à autorregularização e à conformidade tributária.

De modo semelhante ao que foi implantado no âmbito da Secretaria da Fazenda do Estado de São Paulo, pelo Programa “Nos Conformes”[5], a DRJ poderia realizar análise fiscal prévia, concedendo oportunidade ao contribuinte de sanar irregularidades identificadas.

O paradigma de litígio que hoje vigora seria reformulado com base nas melhores práticas de governança do mundo, priorizando diálogos prévios com contribuintes, oportunização e incentivo à autorregularização antes da lavratura de autos de infração, instituição de programas de conformidade colaborativos, criação de mecanismos mais efetivos de prestação de consultoria aos contribuintes, definição de critérios vinculados à qualidade e à inovação no desempenho da função e atendimento proativo aos contribuintes, como criação de canais de comunicação mais ágeis e dinâmicos.

As DRJs assumiriam, nesse cenário, também função orientadora, priorizando a expedição de atos normativos que formalizem sua interpretação da legislação tributária de maneira célere e imediata após o início da vigência de nova lei, permitindo ao contribuinte conhecer o entendimento da Receita Federal e adequar seu comportamento antes do lançamento.

Exercendo tal função, as DRJs evitariam a lavratura de autos de infração inconsistentes ou aperfeiçoariam o lançamento antes de instaurado o litígio, evitando-se toda a movimentação de máquina altamente qualificada e, portanto, dispendiosa, tanto em âmbito do julgamento administrativo quanto do julgamento judicial.

  • Emprego do entendimento jurisprudencial consolidado como instrumento de segurança jurídica

Para que essa mudança de paradigma seja efetiva, o controle prévio do lançamento deverá observar o mesmo referencial normativo[6] atualmente atribuído ao Carf, não se limitando às orientações da Receita Federal.

Também deverá ser considerado o entendimento jurisprudencial consolidado à época de ocorrência dos fatos geradores do tributo em análise pela DRJ, garantindo que novas interpretações do fato tributário não sejam aplicadas retroativamente e assegurando respeito ao princípio da boa-fé objetiva e proteção da confiança legítima.

A partir desses parâmetros, a DRJ realizará verdadeira antecipação da análise feita nas etapas do contencioso, substituindo o litígio pela conformidade ao sistema tributário.

  • Aprimoramento do Carf

Essas medidas, que olham de maneira global para as deficiências do processo administrativo fiscal federal, devem ser conjugadas, é certo, ao aprimoramento do tribunal administrativo, para que sua função julgadora seja exercida de forma plena e ainda mais consistente.

Os critérios adotados no processo de seleção e renovação de mandatos dos julgadores devem ser reavaliados e todas as suas etapas, desde a escolha pelos órgãos legitimados, publicizadas. É também necessária a equiparação de direitos e deveres atribuídos aos conselheiros das diferentes representações.

Súmulas devem ser ampliadas e ter seus critérios de fixação mais bem definidos, para que representem efetiva consolidação da jurisprudência administrativa, e não entendimentos circunstanciais. As matérias já pacificadas pelo Poder Judiciário devem ter maior grau de observância pelos julgadores, podendo ser objeto de decisões monocráticas no âmbito do Conselho, abrindo espaço para a segurança jurídica e a celeridade processual.

A gravação e a transmissão das sessões de julgamento agregariam ainda mais transparência às atividades do órgão, permitindo também o registro dos ricos debates técnicos e das declarações de voto proferidas pelos conselheiros, muitas vezes não formalizadas pela ausência de métricas de produtividade relacionadas a essa atividade. Secundariamente, mas não menos importante, esse banco de dados permitirá a criação de estudos acadêmicos sobre o comportamento do tribunal, reforçando o controle social das decisões e a previsibilidade do sistema.

O início da reforma

As fragilidades do Carf devem, e podem, ser superadas, e não usadas como mote para a sua substituição por um novo órgão, que será submetido aos mesmos desafios e disfuncionalidades de um contencioso fiscal complexo, irracional e custoso.

Com a mudança gradual dos incentivos que permeiam a relação Fisco e contribuinte, a implementação de instrumentos que troquem litigiosidade por mais segurança jurídica e a simplificação do intrincado sistema tributário em uma possível reforma tributária[7], o litígio deverá ser instaurado apenas quando efetivamente necessário e insuperável.

Quando chegarmos a esse novo marco, estaremos prontos, como sociedade, para pensar novos modelos em que o tribunal administrativo tenha menor importância e possa ser transformado em órgão de julgamento com diferente formatação e representatividade.

 

Este artigo reflete a opinião de seus autores e é resultado das análises e discussões realizadas no âmbito do Grupo de Estudo de Políticas Tributárias (GEP) da FGV Projetos, coordenado por Ana Carolina Monguilod, Breno Ferreira Martins Vasconcelos, Melina Rocha Lukic, Rodrigo Mattos Vieira de Almeida e Victor Metta.

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[1] A necessidade de reforma tributária já foi publicamente mencionada pelo Ministro da Economia e pelo Secretário da Receita Federal, como veiculado, por exemplo, nas matérias d’O Globo e da Folha de São Paulo intituladas ‘Precisa de uma reforma tributária brutal’ (disponível em https://oglobo.globo.com/economia/precisa-de-uma-reforma-tributaria-brutal-diz-paulo-guedes-23431613, acessado em 20/03/2019) e “Pela reforma tributária, abro mão do imposto único, diz futuro secretário de Guedes” (disponível em https://www1.folha.uol.com.br/mercado/2018/12/pela-reforma-tributaria-abro-mao-do-imposto-unico-diz-futuro-secretario-de-guedes.shtml, acessado em 20/03/2019).

[2] SANTI, Eurico di. O “iluminado” ou “a maldição” do lançamento por homologação – Operação Zelotes no CARF, guerra fiscal do ICMS e indústria do contencioso tributário denunciam a distorção e o desvio de finalidade da técnica. Disponível em: https://www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/o-iluminado-ou-a-maldicao-do-lancamento-por-homologacao-17052015. Acessado em 17/03/2019.

[3] Em nota de esclarecimento publicada no dia 07/02/2019, o Carf apresentou os dados gerenciais que refletem sua produtividade em 2018, demonstrando que, após a reestruturação do Conselho, a estimativa de tempo para julgamento do estoque ainda não distribuído para relatoria foi reduzida de 77 para 6 anos no período entre 2015 e 2018. Os dados gerenciais estão disponíveis em: http://idg.carf.fazenda.gov.br/dados-abertos/relatorios-gerenciais/dados-abertos-janeiro2019-v2.pdf, acessado em 19/03/2019.

[4] Evidência dessa capacidade de redução do estoque de processos judiciais é verificado nos dados divulgados no “Relatório de Decisões do Carf – janeiro a dezembro de 2016”[4]. De acordo com o relatório, 52,4% dos recursos (voluntários, de ofício e especiais) julgados no período foram decididos favoravelmente aos contribuintes, cancelando, total ou parcialmente, as autuações impugnadas e que sem o controle de legalidade pelo Carf seriam automaticamente transferidas ao Poder Judiciário para cobrança.

[5] O Programa de Estímulo à Conformidade Tributária – “Nos Conformes” foi instituído pela Lei Complementar nº 1.320, de 2018. No seu art. 14, II, há previsão da Análise Fiscal Prévia – “AFP”, aplicável aos contribuintes bem classificados, em razão de seu histórico de conformidade, em que é concedida oportunidade de regularização, preservando-se os efeitos da espontaneidade, ou seja, resguardando a possibilidade de adequação do procedimento sem a imposição de penalidades.

[6] O artigo 7º, inciso V, da Portaria MF nº 341/11[6], vincula as delegacias de julgamento da RFB à aplicação de instruções normativas, tornando a atividade das DRJ mais restrita que a do Carf, ao qual é possibilitado o controle de legalidade dos atos de lançamento conforme a lei e o Direito.

A partir desse parâmetro objetivo, ao se encarar o Carf como causa, e não sintoma da excessiva litigiosidade, a supressão de suas turmas ordinárias implicaria a concentração do julgamento e da uniformização de decisões no âmbito da RFB, com a limitação do controle de legalidade atualmente amplo dos autos de infração lavrados pela Administração tributária federal e a potencial transferência de litígios desnecessários ao Poder Judiciário.

A diferença entre os referenciais normativos também foi destacada pela atual Presidente do Carf, Adriana Gomes Rêgo, em recente entrevista à Conjur intitulada “Se alguém manda, é o Carf que vincula a Receita Federal, não o contrário”. Disponível em https://www.conjur.com.br/2019-mar-10/entrevista-adriana-gomes-rego-presidente-carf, acessado em 17/03/2019.

[7] Como, por exemplo, a excelente proposta do CCiF, para substituição dos tributos sobre o consumo ICMS, ISS, IPI, PIS e Cofins, por um imposto único sobre bens e serviços (IUBS): http://www.ccif.com.br/wp-content/uploads/2018/08/PEC-e-JUSTIFICATIVA-Emenda-Mendes-Thame-1-1.pdf

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