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Limite Sutil (MEIO & MENSAGEM)

Novos hábitos de consumo de mídia desafiam nas redes sociais a regulamentação da publicidade infantil

Por SALVADOR STRANO soliveira@grupomm.com.br

Nas novas gerações, as crianças têm mudado drasticamente a forma de consumo de conteúdo. Esse momento cria desafios para a fiscalização de anúncios que podem ser considerados abusivos, segundo o Conar (Conselho Nacional de Autoregulamentação Publicitária). Entre elas, estão o uso da voz imperativa nas peças — isto é, estimulando diretamente que a audiência adquira o produto — e a falta de clareza sobre a diferenciação entre publicidade e conteúdo. Facilmente encontradas no ambiente digital, não só ferem o regulamento do Conar como podem resultar em sanções às marcas ou aos canais em que são veiculadas.

Nos últimos 12 meses disponíveis para consulta, 7,4% das representações julgadas pelo órgão em assuntos voltados ao público infantil foram sobre denúncias de falta de notificação clara ao público sobre o caráter publicitário de conteúdo publicado no YouTube. De acordo com estudo realizado pelo ESPM Media Lab em 2017, 78% das crianças e adolescentes brasileiros usuários da internet possuem perfil próprio e estão menos sujeitos, portanto, a filtros parentais. A faixa de zero a 12 anos em especial foi responsável por quase 117,5 bilhões de views, até o final de 2017, de vídeos de categoria infantil: crescimento de 200% em comparação com o estudo anterior.

Alguns casos recentes são bastante emblemáticos. No segundo semestre de 2017, a influenciadora mirim Julia Silva lançou desafios à audiência, relacionados à marca Monster High, numa espécie de concurso para formar youtubers. A Mattel foi julgada e condenada pelo Conar por não deixar claro que era patrocinadora do conteúdo, além de também ter usado voz imperativa. A reclamação foi feita pelo Ministério Público, e formulada pelo Instituto Alana. Outro caso chegou ao órgão em fevereiro deste ano: os Irmãos Neto foram condenados pelo conselho de ética do Conar na campanha “Desafio Felipe Neto vs Lucas Neto (Na Neto Land)”. A dupla incentivou que a audiência ligasse para um número para participar de um concurso que daria direito a uma viagem e estadia na casa deles de Orlando. A custo da ligação era de R$ 5 — que, de acordo com a denúncia, não estava tão claro quanto o estímulo da dupla à participação dos fãs. Depois do processo
cada participante ficou limitado a fazer dez ligações. Em março deste ano, Felipe Neto também divulgou seu segundo livro utilizando-se de frases como “compre agora” e “compre meu livrão” — apesar de ser um produto próprio, as regras ainda se aplicam.

Felipe Neto questiona a decisão. “Por que o julgamento foi de portas fechadas depois dos meus advogados serem retirados da sala no momento da votação? A decisão do Conar foi midiática, nada além disso”, afirma. O youtuber também questiona a faixa etária considerada pelo Conar. “Uma pesquisa recente comprovou, após 1,5 milhão de respostas, que 39% dos inscritos do meu canal possuem de 0 a 12 anos e 51% de 13 a 18 anos”, diz, afirmando que as regras, como estão, favorecem a “interesses próprios do mercado”.

Em outubro de 2016, a Hasbro chegou ao conselho de ética por ter supostamente patrocinado o unboxing de uma boneca Baby Alive. Em sua defesa, a empresa afirmou que não era responsável pela página e, ainda, que não pagou ou enviou produtos à influenciadora mirim Julia Silva. O caso foi arquivado após declaração dos responsáveis pela youtuber de que a marca não havia enviado o produto. Como a Hasbro, cada vez mais empresas se defendem de denúncias no Conar dizendo que não estimulam ações de unboxing ou review de seus produtos por influenciadores, cabendo somente a eles ou seus responsáveis tais iniciativas.

Há, ainda, diversos exemplos na plataforma de vídeo do Google que se encaixam nos critérios de abuso do Conar, ainda que a entidade não tenha julgado. A rede de papelarias Lepok investiu a maior parte de sua verba de marketing na campanha de volta às aulas de 2017 com a contratação de youtubers como Gabriel Miller e Fernanda Concon para realização de branded content. A agência Ecco, que realizou a campanha, afirma, em publicação online, que a ação com 15 influenciadores
resultou em mais de 43 milhões de impactos, aumento de 8% no ticket médio, 75% de crescimento das vendas pelo e-commerce. À reportagem, o anunciante não quis comentar as inadequações da
ação quanto ao regulamento do Conar. Mas a campanha pode ser caracterizada como merchandising, o que também é proibido pela autorregulamentação. “Branded content é um merchandising. No Conar, as sanções relacionadas a uma conduta antiética vão desde advertência até uma moção pública de que ele viola o código. Se for considerada abusiva, pode sofrer sanções e multas da justiça”, afirma Marco Sabino, conselheiro de ética do órgão e advogado do escritório Mannrich e Vasconcelos.

Sabino ainda aponta que a principal responsabilidade é do patrocinador, e não do protagonista da propaganda ou da plataforma. Segundo o Marco Civil da Internet, as redes sociais só serão penalizadas por algum conteúdo dentro de seu serviço se foram notificadas pela justiça e, ainda assim, decidirem não retirar a publicação do ar.

Jurisprudência

De março de 2017 a fevereiro de 2018, o Conar julgou 27 casos sobre possíveis abusos em publicidade infantil, ainda que esse número não represente na totalidade a quantidade de mensagens publicitárias veiculadas em canais abertos, fechados e meios digitais que poderiam entrar nesse filtro. Gustavo Ferraz Monaco, professor de direito da USP e especialista em direito da criança, acredita que ainda prevalece um direcionamento de atenção aos meios tradicionais, apesar do crescimento do digital: “Imagino que haja uma preferência de fiscalizar aquilo que atinge a sociedade como um todo. Não justifica, mas explica.”

Marco Sabino ainda aponta que, para alcançar um número maior de casos julgados, seria essencial uma parceria ativa das plataformas sociais no compartilhamento de informações sobre conteúdos que não respeitam a regulamentação atual. Segundo o Código de Defesa do Consumidor, é proibida a propaganda que se aproveite da falta de capacidade de julgamento e experiência da criança. É uma definição, porém, que ainda causa dúvidas, pois gera muitas interpretações sobre o que é excessivo ou não nesse tipo de publicidade.

A visão do ministro Herman Benjamin pode pavimentar o caminho da questão. Em 2016, ao julgar o caso da Pandurata Alimentos, dona da marca Bauducco, o ministro do Supremo Tribunal de Justiça afirmou que, quando a empresa veiculou a promoção “É hora de Shrek”, cometeu abusos. A campanha consistia na necessidade de que a criança comprasse cinco produtos da linha Gulosos Bauducco e pagasse mais R$ 5 para adquirir um relógio do personagem. Benjamin afirmou que os excessos foram cometidos por se tratar de venda casada e, também, por ser publicidade dirigida ao público infantil. A ação civil pública foi movida pelo Ministério Público de São Paulo, com origem na atuação do Instituto Alana, por meio do programa Criança e Consumo.

O voto do relator é sobre um caso concreto, por isso não pode ser visto como regra geral, mas “o fato de ter sido uma decisão unanime mostra que o tribunal firmou um entendimento. Isso tem sido visto como um leading case. É um caso que vai puxar a jurisprudência”, afirmou Gustavo, da USP. Sabino concorda que o caso pode representar um norte, mas afirma que é ilegal por ferir a liberdade de expressão. “Esse tipo de decisão constitui algo perigoso, não há nenhuma lei federal nesse tipo de proibição. Produtos e serviços para crianças podem sim ser anunciados”, afirma o advogado.

Gustavo, por outro lado, entende que “além da constituição garantir a liberdade, ela também garante a proteção da criança e do adolescente. Entre o direto da publicidade e da criança ser protegida, a criança prevalece”. Para ele, a solução seria uma comunicação para informar os pais sobre o produto, e não as crianças. Agências e marcas seguem experimentando
no terreno dos digital influencers, bastante novo para todos os envolvidos, mas à espreita do Conar, que tem direcionado cada vez mais atenção a esse tipo de veiculação. O terceiro maior motivo
de questionamentos no Conar em 2017 foi publicidade em redes sociais. Como o conteúdo infantil online cresce no mesmo ritmo de sua audiência, o trabalho de rever e revisar essa modalidade de anúncio também deve aumentar.

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