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Fim da Justiça do Trabalho depende do Congresso (Valor)

Fim da Justiça do Trabalho depende do Congresso

Por Joice Bacelo, Beatriz Olivon e Zínia Baeta | Valor

SÃO PAULO E BRASÍLIA  –  A pretensão do presidente Jair Bolsonaro de transferir os processos trabalhistas para a Justiça Comum não é algo que possa ser executado com facilidade, afirmam especialistas. Primeiro porque dependeria da aprovação no Congresso de uma mudança constitucional, o que demanda quórum qualificado, e depois pela própria dificuldade que haveria em desenhar uma nova estrutura para o Judiciário.

Ainda assim, no meio jurídico, existem os dois lados: aqueles que apoiam a ideia e acreditam que a extinção da Justiça do Trabalho poderia, inclusive, reduzir custos, e os que consideram a sua manutenção importante para o país, pela agilidade com que tramitam os processos e por acreditarem que a extinção não resolveria o problema da litigiosidade.

O presidente Jair Bolsonaro afirmou existir um estudo para acabar com a Justiça do Trabalho em entrevista ao SBT, na última semana. “Qual o país do mundo que tem [Justiça do Trabalho]? Tem que ser na Justiça Comum [a análise desses processos]”, disse.

Segundo o presidente, “havendo clima”, a proposta poderá ser discutida e levada adiante. Ele entende que existe um “excesso de proteção” ao trabalhador. “Até um ano e meio atrás, no Brasil, eram em torno de quatro milhões de processos trabalhistas por ano. Ninguém aguenta isso. Nós temos mais ações trabalhistas do que o mundo inteiro junto”, respondeu à emissora.

Para terminar com a Justiça Trabalhista, porém, um longo caminho precisa ser percorrido. “O presidente não pode extinguir como fez com o Ministério do Trabalho”, pondera a ministra Delaíde Alves Miranda Arantes, do Tribunal Superior do Trabalho (TST).

É necessário que uma proposta de emenda à Constituição (PEC) seja aprovada no Congresso. O trâmite se inicia na Comissão de Constituição e Justiça da Câmara e, no plenário, precisa de votação em dois turnos e aprovação de pelo menos 308 de um total de 513 deputados.

Um ritual parecido se repetiria no Senado: comissão especial, votação em dois turnos e concordância de ao menos 60% dos senadores em cada um deles.

A estrutura do Judiciário está estabelecida no artigo 92 da Constituição. No inciso I, por exemplo, consta o Supremo Tribunal Federal (STF). No IV está a Justiça do Trabalho. O que os parlamentares decidiriam, na PEC, seria a supressão desse inciso IV do texto.

E mesmo essa PEC sendo aprovada, o assunto pode ainda ser judicializado. Segundo especialistas ouvidos pelo Valor, poderia haver questionamentos perante o STF sobre a transferência das competências da Justiça do Trabalho para outras esferas.

A parte de implementação de uma nova estrutura do Judiciário, sem a esfera trabalhista, também não seria algo simples. O presidente do Tribunal de Justiça de São Paulo (TJ-SP), desembargador Manoel Pereira Calças, afirma que não haveria condições para absorver o volume de processos trabalhistas. “Nós já temos 18 milhões”, diz.

Pereira Calças supõe que, se a Justiça do Trabalho realmente for abolida, o que ele não acredita que acontecerá, quem absorveria a demanda seria a Justiça Federal. “Porque todos os juízes do trabalho são juízes federais”, afirma. “Mas mesmo assim haveria problemas porque nós temos tribunais regionais do trabalho em quase todos os Estados brasileiros e os tribunais federais são só cinco”, acrescenta o presidente do TJ-SP.

Nelson Mannrich, professor titular de direito do trabalho da USP e sócio do Mannrich e Vasconcelos Advogados, acredita que mudar a competência trabalhista para a Justiça Federal provocaria apenas uma alteração de endereço. “Haverá um agigantamento da Justiça Federal, que absorverá esses processos que não deixarão de existir”, diz. “A questão central não é se as ações serão julgados na Justiça do Trabalho ou outro endereço, mas como reduzi-las”.

No entendimento do professor, o ideal seria investir na simplificação e modernização das leis do trabalho e dar protagonismo à negociação coletiva e aos mecanismos alternativos de solução de conflitos, como conciliação, mediação e arbitragem.

Da mesma opinião é a advogada Dânia Fiorin Longhi, do escritório Fiorin Longhi Advocacia. Ela acredita que a Justiça do Trabalho apenas mudará de nomenclatura, passando para Justiça Federal. Segundo ela, os “novos magistrados federais”, provenientes da esfera trabalhista, continuariam a fazer o mesmo de antes.

Já o advogado Pedro Abreu, do escritório DC Associados, diz que essa não é uma ideia nova. “Bolsonaro está fazendo renascer algo de 20 anos atrás, quando Fernando Henrique Cardoso era presidente”, afirma. E, na opinião do advogado, uma mudança nesse sentido seria positiva.

Em 2004, época de tramitação da PEC nº 45, que tratou da reforma do Judiciário, alguns parlamentares tentaram com que ocorresse uma fusão com a Justiça Federal. A proposta, porém, acabou não vingando.

“Mais grave que o fim da Justiça do Trabalho é o custo administrativo para mantê-la. Poderia funcionar tudo junto tranquilamente”, diz Abreu. Seria um braço da Justiça Federal, acrescenta o advogado, como já ocorre, por exemplo, com a área previdenciária.

O presidente da Associação Nacional dos Magistrados da Justiça do Trabalho (Anamatra), Guilherme Feliciano, considera, porém, “uma temeridade” esperar que os juízes comuns possam julgar as ações “da noite para o dia”. Isso porque nos concursos de admissão ao cargo não há sequer avaliação sobre as questões trabalhistas.

Ele entende que se o problema é uma legislação excessivamente protecionista e essa seria a causa da quantidade de processos que existe hoje, como afirmou o presidente, o “equacionamento proposto não condiz com o diagnóstico que foi feito”. “Há um claro vício na relação entre causa e consequência. Seria como culpar a janela pela paisagem”, diz.

Ministros do TST consideram como “falacioso” o argumento do presidente Jair Bolsonaro de que só no Brasil existe Justiça do Trabalho. A Alemanha, afirmam, tem e inspirou diversos instrumentos da Justiça brasileira. Também foram citados países como Inglaterra, França, Bélgica, Chile e México.

O presidente em exercício da Corte, ministro Renato de Lacerda Paiva, no entanto, disse ser “natural e fazer parte da democracia o debate sobre questões públicas de interesse da sociedade.”

Segundo Lacerda Paiva, o presidente Jair Bolsonaro esteve no TST em novembro e disse que eventuais mudanças serão precedidas de consulta aos ministros do tribunal. “Estamos à disposição para prestar todas as informações necessárias sobre o papel da instituição e sua relevância para o país.”(Colaborou Luísa Martins)

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