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Carf recomenda a conselheiros que não comentem casos em andamento no tribunal (JOTA)

Carf recomenda a conselheiros que não comentem casos em andamento no tribunal

Novo código de ética veda comentários sobre processos em aulas, palestras, seminários, livros e artigos

O Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (Carf) recomenda a seus 180 conselheiros: cuidado com o que é dito não apenas dentro, mas fora do tribunal. Com a publicação do novo Código de Conduta Ética dos Agentes Públicos a serviço do órgão, a entidade agora espera que cada julgador “não expresse opiniões em aulas, palestras, seminários, livros e artigos sobre processo ou matéria pendente de julgamento no Carf, de que seja ou não relator”.

A redação, presente no inciso XXVI do artigo 3º do código, está em vigor desde o dia 23 de abril. A portaria apresenta recomendações e preceitos que conselheiros e outros funcionários do Carf devem seguir, tais como independência, cortesia, prudência e sigilo. A proposta recebeu críticas, reservadas e públicas, de pesquisadores, conselheiros e ex-conselheiros, que apelidaram o trecho de “mordaça” ou “mordaça acadêmica”, apontando que haveria uma “clara inconstitucionalidade” no dispositivo.

Sem comentários

Entre as fontes consultadas pelo JOTA, nenhum dispositivo do novo código chamou mais a atenção do que o inciso XXVI do artigo 3º. A restrição do comentário sobre matérias ainda pendentes de julgamento no Carf está junto a uma série de recomendações genéricas feitas pelo conselho de ética. Em nota, o Ministério da Economia, ao qual o Carf é subordinado, afirmou que a intenção do artigo, bem como de toda a publicação, é “servir de instrumento norteador da adoção de condutas éticas desejáveis por parte dos agentes públicos em exercício no órgão”.

Conselheiros a serviço do órgão ouvidos pelo JOTA não se sentiram confortáveis de comentar abertamente o novo texto nos corredores do edifício Alvorada, sede do tribunal em Brasília. As posições são motivadas: o inciso VI do mesmo artigo pede que os julgadores se abstenham de comentar opiniões pessoais com veículos de comunicação, e não há certeza sobre os efeitos práticos do descumprimento das recomendações.

Reservadamente, o entendimento de alguns julgadores é que o código fere a liberdade de expressão, sendo contrário ao previsto no artigo 5º da Constituição. Outra grande preocupação está relacionada à liberdade de cátedra, que poderia ser prejudicada.

A crítica é feita tanto por representantes da Fazenda quanto por julgadores que representam os contribuintes no tribunal. Um professor universitário e ex-conselheiro do órgão ouvido pela reportagem afirmou que a administração quer controlar os conselheiros o máximo possível.

Segundo o ex-conselheiro, há problemas de ordem material, formal e prática no código de ética: “Os limites do julgador administrativo devem ser paralelos ao do Judiciário. Se o juiz tem um certo nível de sigilo, este nível não pode ser maior para o julgador do Carf”, lembrou.

Há ainda, em sua visão, uma real ameaça a professores que, como ele, já acumularam as funções de conselheiro e titular em faculdades e cursinhos.”O servidor público pode ser professor, inclusive acumulando função pública”, lembrou.

Qualquer ato que limite a atividade do professor/conselheiro como um formulador de conhecimento é inconstitucional

Professor universitário e ex-conselheiro do Carf

Segundo ele, a discussão sobre o tema, na fase de minuta do código, previa apenas que processos em andamento não poderiam ser comentados pelos julgadores – o que, em sua visão, colocaria o Carf em sintonia com o entendimento do Judiciário sobre níveis de sigilo.

Assim, o impedimento a comentar quaisquer “matérias” em discussão gera um problema de ordem prática. “Como um conselheiro do Carf vai ter controle sobre o que é ou não discutido no Carf?”, questionou.

“É impossível saber o que está sendo discutido no Carf, então seria impossível escrever qualquer tipo de manifestação, inclusive no âmbito acadêmico, a não ser que esta pessoa se abstenha totalmente de discutir a legislação tributária federal”.

“Impedir o conselheiro de se manifestar tecnicamente sobre qualquer matéria pendente de julgamento é impedi-lo de ser professor”, afirmou Breno Vasconcelos, sócio do Mannrich Vasconcelos ex-conselheiro do Carf, que também comparou a decisão a uma ‘mordaça acadêmica’.

Outro conselheiro, que está na atual composição do tribunal, expressou desânimo com a decisão, que considerou como “a pior da atual gestão”. O conselheiro, que também acumula o magistério, afirmou que a portaria “é mais do que inconstitucional, é uma vergonha”.

Por fim o julgador afirmou que a medida não deverá mudar sua atitude dentro e fora das salas de aula. “Eu não vou mudar um milímetro minhas aulas e palestras”, comentou. “Se [O Carf] quiser notificar, vou ter prazer em derrubar a notificação na Justiça”.

“[O artigo] é claramente indevido e ilegal”, concluiu Vasconcelos, que questionou: “como pode uma portaria, da presidente do Conselho, violar a Constituição de uma forma tão evidente? É uma evidente violação ao direito e garantia individual do conselheiro”.

Em nota, o Ministério da Economia afirmou que “a Comissão de Ética do órgão não identificou inconstitucionalidades de qualquer natureza no texto publicado”.

Redes sociais

Uma premissa, considerada por Vasconcelos como prejudicial ao debate, permeia a discussão sobre a efetividade do código de ética do Carf: os conselheiros que representam os contribuintes são agentes honoríficos e ocupam função pública que não se confunde com as funções de confiança, como é o caso dos seus pares representantes do Fisco.

Este entendimento consta de um parecer da Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional (PGFN) de 2016 que não equipara os conselheiros na Lei Orgânica do Servidor Público (Lei nº 8.112/90).

“Há um claro descompasso entre o que diz o código de ética, afirmando que os conselheiros dos contribuintes são agentes públicos que estão sujeitos a todas as estas regras, e o parecer da PGFN, que diz que por ser agente honorífico, não há direito nenhum”, pontuou o advogado.

A questão respinga, por exemplo, no uso de redes sociais. O artigo 15º do código espera dos membros julgadores prudência, “inclusive por meio de redes sociais”, ao comentar “processo ou matéria pendente de julgamento, de sua relatoria ou de outrem, ou a emissão de juízo depreciativo sobre despachos, resoluções, votos ou acórdãos, prolatado por seus pares ou qualquer instância administrativa do Carf”. A restrição vale para discussões judiciais, exceto nos casos de discordâncias presentes nos autos, em discussões em plenários ou de ordem técnica.

“Não há problema algum o conselheiro fazer um juízo e tornar público seu pensamento técnico sobre decisões proferidas pelo órgão”, pontuou Maria Raphaela Dadona Matthiesen. Assim como Vasconcelos, Maria Raphaela é pesquisadora do projeto “Macrovisão do Crédito Tributário”, do Núcleo de Estudos Fiscais da Fundação Getúlio Vargas (FGV).

A tributarista e pesquisadora lembra que é essencial ao conselheiro evitar expor e adiantar um voto ainda não dado, mas pronunciamentos pautados em críticas técnicas não devem ser inibidos. “É uma limitação ao seu direito de liberdade de expressão. É justamente por meio destas decisões e da análise crítica desta decisão que se consegue melhorar o conhecimento e aprimorar o controle social”.

Procurada pelo JOTA, a Associação dos Conselheiros dos Contribuintes do Carf (Aconcarf) afirmou que ainda estuda o texto para poder se manifestar oficialmente. O Ministério da Economia assinalou que o texto passou por ampla consulta aos agentes públicos em exercício no órgão, e que a minuta ficou disponível para críticas e sugestões entre fevereiro e março deste ano.

Zelotes

Para parte dos especialistas consultados, o novo código de ética dá mais uma resposta à Operação Zelotes, que descortinou esquema de compra e venda de decisões no tribunal administrativo.

Vasconcelos conta que após a Operação parte dos advogados deixaram a função de julgadores. À época ele era conselheiro na 1ª Seção, e foi um dos que deixou a composição, dando lugar a um Carf com mais professores, mestrandos e doutorandos com a inscrição na OAB suspensa – que passou a ser requisito para assumir o cargo.

Alguns lembram que a existência de mais membros do magistério no julgamento seria, na visão do antigo presidente do Carf, Carlos Alberto Freitas Barreto, uma maneira de recompor a perda de conhecimento devido à partida dos advogados.

“Agora, se quer matar a vida acadêmica do sujeito. Então, qual o futuro do Carf?”, provoca Breno, “Quem irá ocupá-lo, e quem serão os próximos conselheiros?”

Os (poucos) elogios

Nem todos os comentários sobre o texto, porém, são críticos. As recomendações sobre como agir em audiências com as partes e em caso de eventual recebimento de presentes (que, em casos específicos, deverão ser entregues pelo conselheiro para o Carf), o texto recebeu elogios.

“Já aconteceram casos muito negativos de interpelação a conselheiros, por parte de outros conselheiros, onde faltou decoro e respeito ao trabalho do outro”, analisou Vasconcelos. “Conselheiros não têm que ir a restaurantes discutir assuntos. E há que se vedar mesmo a discussão entre conselheiros e interessados fora dos trâmites do Código de Ética.”

Há outros pontos que receberam elogios, como a expectativa do órgão para que seus julgadores evitem “conduta que possa refletir favoritismo, predisposição ou preconceito” em julgamentos, como previsto no artigo 8º; ou então que estes devem realizar o atendimento ao público com “agilidade, presteza, qualidade, urbanidade e respeito, fornecendo-se informações claras e confiáveis”, como pede o artigo 4º.

As regras de compliance podem ser vistas, na visão de advogados e conselheiros, como uma tentativa do tribunal de se modernizar após as denúncias da Operação Zelotes.

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