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Relações trabalhistas passam por profundas transformações (Revista Consultor Jurídico)

Revista Consultor Jurídico | Retrospectiva 2014

Relações trabalhistas passam por profundas transformações

Por Nelson Mannrich | 03.01.15 – 8h08

Determinados acontecimentos são referências históricas – 2014 será lembrado por muitos fatos, mas a Copa do Mundo será inesquecível (provavelmente pela nossa derrota de 7×1 da Alemanha). A operação “lavo jato”, desvendando extensa rede de corrupção em torno da Petrobras, também será lembrada como referência no aperfeiçoamento de nossa democracia. Mas, que fatos relevantes vinculam 2014 ao Direito do Trabalho? Poucos, afora algumas leis e decisões judiciais, que poderão mudar a história de nosso modelo de relações trabalhistas. No entanto, os verdadeiros fatos relevantes podem passar despercebidos ao olhar do observador menos atento — nossas relações trabalhistas passam por profundas transformações.

Entre as mudanças legislativas, algumas leis relacionam-se diretamente com Direito do Trabalho; outras não. Há projetos interessantes e outros nem tanto. Assim, a denominada PEC do Trabalho Escravo certamente é o fato mais relevante: de acordo com a Proposta de Emenda Constitucional 57 A/1999, o artigo 243, da Constituição da República, agora autoriza expropriação de imóveis rurais ou urbanos onde se verificar trabalho escravo. Além da perda do imóvel, os proprietários sujeitam-se a sanções penais. Há unanimidade em se regulamentar a PEC para fixar procedimentos de expropriação. A divergência envolve o conceito de trabalho escravo. Para o governo, deverá ser mantido o atual artigo 149, do Código Penal, vinculando trabalho escravo a excesso de jornada e a condições degradantes, entre outras. Para a oposição, esse conceito é inadequado. Se é objetivo o conceito de trabalho forçado, é muito ampla a noção de “jornada exaustiva” e mesmo de “condições degradantes”. Além disso, mero descumprimento da legislação trabalhista não caracterizaria trabalho escravo, pois a Consolidação das Leis do Trabalho já estabelece sanções adequadas. A regulamentação da PEC deve resultar de amplo debate da sociedade, fixando-se, de forma objetiva e clara os elementos do conceito de trabalho análogo à escravidão, de modo a não ficar impune quem insistir em manter essa chaga social.

Deve-se mencionar, ainda, a Lei 12.964, de 8 de abril de 2014. Alterou a Lei 5.859/72, para incluir o artigo 6º – E, relativo à multa por infração à legislação do trabalho doméstico.  Como o artigo 7º, da CLT, exclui os domésticos de sua aplicação, eventuais descumprimentos não eram passíveis de sanção. Essa lacuna foi preenchida, aplicando-se a CLT, no que couber, às infrações à Lei 5.859/72. Não bastasse, a multa por não registrar o doméstico ou por não anotar sua remuneração na CTPS será elevada em, pelo menos, 100%.

Importante alteração ocorreu por força da Lei 12.997, de 18 de junho de 2014, que acrescentou o parágrafo 4º ao artigo 193 da CLT. São consideradas perigosas as atividades de trabalhador em motocicleta. Após o período de consulta pública, a Portaria 1.565, de 13 de outubro de 2014, aprovou o Anexo 5, da NR-16, fixando diretrizes para sua aplicação. É considerado perigoso o uso de motocicleta ou motoneta no deslocamento do empregado, no exercício de suas atividades em vias públicas. A lei exclui do risco quando ouso desse veículo for eventual, seja porque fortuito, seja quando, mesmo sendo habitual, ocorrer por tempo extremamente reduzido. A simples utilização da moto como meio de transporte para o trabalho não gera qualquer adicional.

Deve-se ressaltar outra importante alteração, sendo esta introduzida pela Portaria GM/MTE 789, de 2 de junho 2014, envolvendo duração do contrato de trabalho temporário. Foi ampliada por mais 3 meses, passando de 6 para 9 meses, como se infere do artigo 2º, da portaria, mantidas as exigências que condicionam sua autorização. Trata-se de mecanismo adequado para a empresa dimensionar seu quadro de pessoal, notadamente em tempos de crise, em casos de substituição eventual de empregado permanente ou períodos de “pico de produção”.

No âmbito da legislação processual, devem ser apontadas duas relevantes ocorrências: a nova sistemática recursal trabalhista, introduzida pela Lei nº 13.015, de 21 de julho de 2014, e a aprovação do novo Código de Processo Civil, em 17 de dezembro 2014, pelo plenário da Câmara.  Quanto à primeira, alterou os artigos 894, 896, 897-A e 899 da CLT e inseriu os artigos 896-B e 896-C, determinando mudanças significativas nos recursos de revista, tornando mais estreita a possibilidade de reforma das decisões proferidas pelo tribunais regionais. De acordo com a nova sistemática, a edição de súmula pacificando entendimentos divergentes entre as turmas passou a ser obrigatória, podendo o TST devolver recursos aos tribunais de origem para tal fim. Além disso, segundo o artigo 896-B, aplica-se ao Recurso de Revista, no que couber, as regras da Lei 5.869, de 11 de janeiro de 1973, envolvendo julgamento dos recursos repetitivo e especial.

Apesar de avanços, a nova lei não consegue refrear a conflitividade, cada vez mais exacerbada: só entre 2011 e 2012, as Varas do Trabalho receberam quase quatro milhões e meio de processos. Devemos reformar nosso modelo de relações trabalhistas, apostando mais na negociação coletiva e na conciliação, entre outros meios alternativos de solução de conflitos.

Quanto à segunda, o novo Código de Processo Civil, aprovado em 17 de dezembro de 2014, pelo Plenário do Senado e que ainda irá à sanção presidencial, terá impacto significativo no Processo do Trabalho, embora este, sempre vanguardeiro, tenha inspirado aquele em muitos aspectos.
Devem ser mencionadas algumas leis que, embora relacionadas indiretamente, têm repercussão no âmbito trabalhista. Assim, a Lei 12.984, de 2 de junho de 2014, tipifica como crime  discriminar portadores do vírus HIV e doentes de Aids, seja negando-lhes emprego, seja dispensando-os em razão do vírus ou da doença, ou mesmo segregando-os nos ambientes de trabalho ou divulgando a terceiros tal condição, com intuito de atingir sua dignidade. Embora não faça referência a eventual indenização ou reintegração no emprego – nem poderia, por se tratar de matéria típica de lei complementar, há precedentes jurisprudenciais para o trabalhador, nesses casos, invocar, por analogia, a Lei 9.029, de 1995.

Há, ainda, a Lei Complementar 146, de 25 de junho de 2014. Estendeu a garantia de emprego prevista na alínea “b”, do inciso II, do artigo 10, do ADCT, à trabalhadora gestante, nos casos de morte desta, a quem detiver a guarda de seu filho.

Registre-se, ainda, a Lei Complementar 147, de 7 de agosto de 2014. Modificou a Lei Complementar 123, de 14 de dezembro de 2006, relativa à microempresa e empresa de pequeno porte. Na parte envolvendo a legislação trabalhista, ao referir-se à inspeção do trabalho, em seu artigo 55, determina que a fiscalização deverá ter “natureza prioritariamente orientadora”, quando a natureza mesma da atividade ou situação “comportar grau de risco compatível com esse procedimento”. Trata-se de significativo avanço, sinalizando aos auditores fiscais do trabalho lógica diferente da atualmente percebia, com maior ênfase à orientação que punição pura e simplesmente.

Por fim, a Lei 12.965, de 23 de abril de 2014. Estabelece princípios, garantias, direitos e deveres para o uso da Internet, no Brasil, com reflexos em todas as áreas do direito, inclusive no Direito do Trabalho. Trata-se de grande desafio à ponderação entre princípios — o da livre iniciativa, conferindo poderes de direção ao empregador, e o da dignidade do trabalhador e sua privacidade.

Devem ser lembrados, ainda, alguns Projetos de Lei, como o de 7.242/2014, apresentado na Câmara dos Deputados, em 12 de março de 2014. De acordo com esse importante projeto, é diarista doméstico quem presta serviços, para o mesmo empregador doméstico, até três dias por semana. A remuneração e sua forma de pagamento será livremente estipulada pelas partes. Uma vez aprovada, essa lei resolveria grande parte dos conflitos nesse setor. O critério adotado pelo projeto inspira-se em decisões acertadas do próprio TST, ao vincular o conceito de doméstico ao critério continuidade.

Outro projeto, porém discutível, propõe a criação do Sistema Único do Trabalho (SUT). Afora os defeitos de redação, falta de clareza e precisão, no lugar de pretenso avanço, se aprovado, implicará graves retrocessos e elevados custos. Acusado pela oposição de autoritário, o projeto introduz alterações profundas no Ministério do Trabalho e Emprego. Por meio da chamada democracia participativa, prevê a criação de 27 conselhos estaduais, além de milhares de conselhos municipais, aos quais caberiam atribuições como elaboração das políticas públicas de emprego, coordenação da inspeção do trabalho, hoje vinculada à autoridade federal, além de assumirem atribuições hoje próprias do Sistema Nacional de Emprego (Sine). Se aprovado o projeto, será atribuição do Conselho Nacional do Trabalho, entre outras, estabelecer diretrizes e aprovar critérios de transferência de recursos do SUT para entidades privadas sem fins lucrativos, além de avocar as competências do Conselho Deliberativo do Fundo de Amparo ao Trabalhador (Codefat).

Independentemente das citadas leis e projetos de lei, há decisões judiciais da maior importância para as relações de trabalho, algumas já publicadas, outras ainda pendentes. Entre as decisões já publicadas, basta citar a do Supremo Tribunal Federal, relativa à prescrição do FGTS. Declarou inconstitucionais as normas que estabelecem prazo prescricional de 30 anos (julgamento do recurso extraordinário com agravo — ARE 70.912, com repercussão geral reconhecida). De acordo com a decisão, como se trata de direito consagrado pelo artigo 7º da Constituição da República, entre os direitos dos trabalhadores urbanos e rurais, sujeita-se às mesmas regras envolvendo prescrição trabalhista.

Entre as decisões pendentes de julgamento, a mais importante delas envolve terceirização (ARE 713.211). Trata-se de Ação Civil Pública movida pelo Ministério Público do Trabalho para que a empresa de celulosa Cenibra se abstenha de terceirizar sua suposta atividade-fim (contratos de prestação de serviços para as necessidades de manejo florestal). O Supremo reconheceu a repercussão geral do conceito de atividade-fim em casos de terceirização. Segundo o relator, ministro Luiz Fux, trata-se de tema de índole constitucional, sob a ótica da liberdade de contratar.

Aguarda-se decisão histórica, verdadeiro divisor de águas. Milhares de empresas são assediadas pelo Ministério Público do Trabalho e pela própria fiscalização do trabalho, que as acusam de precarizar o Direito do Trabalho, pelos simples fato de se utilizarem da terceirização. Na ausência de lei, encarregou-se o TST de apenas autorizá-la na atividade-fim, o que viola o princípio da livre iniciativa. Não se confunde com intermediação de mão de obra, esta sim a ser banida. Há anos tramitam no Congresso diversos projetos de lei para regulamentar a terceirização, destacando-se o de PL 4.330/2012, de autoria do deputado Sandro Mabel (PR-GO). O texto prevê a terceirização de todas as atividades e funções de qualquer empresa, pública ou privada. Caso esse projeto venha a ser aprovado logo e contemple algum conceito vago, a decisão do Supremo poderá ser esvaziada, retomando novo vigor a Súmula 331, que deixaria de simplesmente preencher o vazio legal, passando a “interpretar” o novo marco legal.

Após tão breve e sucinta retrospectiva dos fatos mais relevantes, influenciados pelo legislativo ou pelo judiciário, merece referência a silenciosa transformação do Direito do Trabalho, sendo este talvez o fato de maior impacto.

Valores como dignidade da pessoa humana do trabalhador e sua integridade física e mental passam a motivar as empresas no cumprimento da legislação trabalhista, com lugar de destaque nos códigos de conduta das corporações. Num cenário mais global, ainda, a retrospectiva deve levar em conta importantes iniciativas envolvendo não só as empresas, como a Justiça do Trabalho, Ministério Público do Trabalho e o próprio Ministério do Trabalho e Emprego, numa verdadeira cruzada na implantação do chamado trabalho decente. Em consequência, há extremo cuidado por parte dos empresários de não apenas cumprir a CLT, como implantar ambiente saudável e seguro de trabalho, propício para florescer a cidadania do trabalhador brasileiro. Nesse sentido, destaca-se ao longo de 2014 a atuação implacável das principais instituições ligadas ao Direito do Trabalho no combate ao chamado trabalho escravo e toda forma de precarização das condições de trabalho. Exageros à parte — como o ataque generalizado à toda e qualquer forma de terceirização — estamos aos poucos construindo um modelo que concilia os valores sociais do trabalho com a livre iniciativa.

Por fim, justa e merecida homenagem aos grandes ídolos que partiram, deixando-nos seu legado perene por meio de suas obras e exemplos de vida. Faço referência aos grandes e inesquecíveis mestres Alice Monteiro de Barros, Amauri Mascaro Nascimento e Armando Casimiro Costa.

Nelson Mannrich é sócio do escritório Mannrich, Senra e Vasconcelos Advogados, professor titular de Direito do Trabalho da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP) e presidente da Academia Nacional de Direito do Trabalho.