Artigo

Os impasses na contribuição previdenciária sobre a folha de salários (JOTA)

Os impasses na contribuição previdenciária sobre a folha de salários

Por Nelson Mannrich, sócio do Mannrich, Senra e Vasconcelos Advogados
Por Breno Ferreira Martins Vasconcelos, sócio do Mannrich, Senra e Vasconcelos Advogados

Há importantes relações entre o Direito Tributário e o Direito do Trabalho, muitas vezes não percebidas ou sequer valorizadas. Enfrentar temas como salário para efeitos de encargos sociais é um dos maiores desafios e corresponde a um dos assuntos onde mais se observa a necessidade de diálogo entre esses dois ramos do direito, não apenas por questões conceituais, como pela omissão e mesmo contradição do legislador.

Responsável por grande fatia da carga tributária nacional, a tributação sobre a folha salarial é relevante tanto por sua expressiva arrecadação quanto por seu extenso e capilarizado alcance. Nesse cenário, e atentos ao crescimento do contencioso envolvendo esse tema, a proposta desse artigo é fixar premissas para a tributação de alguns pagamentos, com base em conceitos já assentados no Direito do Trabalho.

A evolução social constantemente remodela as relações de emprego e seus elementos identificadores. No cenário contemporâneo, o estigma mecânico atrelado à noção de trabalho, limitado ao cumprimento de turnos e à prestação padronizada de serviços e horários dá lugar a outros critérios, com ênfase na dignidade do trabalhador e seu desenvolvimento profissional.

Há novos desafios envolvendo conceitos de carreira, com implementação de planos baseados em meritocracia, dedicação, qualidade e duração do contrato de trabalho. As empresas investem no aperfeiçoamento técnico de seus empregados com subsídios ao ensino, inclusive oferecendo prêmios como forma de reconhecimento e retenção de talentos e estímulo à melhora do desempenho.

Observam-se, ainda, novas modalidades de programas de participação nos lucros ou resultados, estímulo a planos de opção de compra de ações (stock option plans), ou mesmo a planos de previdência complementar, colocando em xeque conceitos tradicionais de salário e remuneração.

Nessa nova dinâmica, o empregado, antes visto como mero executor de atividades empresariais, é impelido a reinventar seu trabalho e melhorar sua produtividade. Inserido na estrutura da empresa, é desafiado a se destacar, promovendo seu crescimento pessoal e, reflexamente, o do empregador.
Como consequência dessas transformações, o Direito, enquanto instrumento de regulação social, deve se adaptar, construindo novas balizas para a aplicação de suas antigas regras. Examinando-se essas novas verbas, observa-se traço comum, de extrema relevância para a presente análise: a ausência de caráter salarial.

A partir da competência tributária conferida pelo artigo 195, inciso I, “a”, da Constituição, o legislador ordinário instituiu contribuições incidentes sobre verbas que ostentem natureza remuneratória. A aferição dessa natureza nos variados pagamentos feitos pelos empregadores enfrenta grande controvérsia na doutrina e nos tribunais que, na ausência de disciplina legal mais específica e atual, assumem a função de delimitar sua identidade ou não com a base de cálculo das exações.

Nessa tarefa, a análise da incidência deve estar apoiada nas concepções formuladas em outro ramo da ciência jurídica: o Direito do Trabalho, no âmbito do qual a remuneração envolve o salário e as gorjetas.

O conceito de salário foi construído com base no sinalagma presente no contrato de trabalho. O salário é pago em contraprestação do serviço prestado, pela disponibilidade do empregado e pelas correspondentes obrigações e direitos decorrentes do contrato de trabalho. A partir desses elementos observa-se o caráter oneroso do contrato de trabalho, permitindo o enquadramento da vantagem econômica como remuneratória.
A natureza salarial de determinado pagamento não resulta da simples existência de um contrato de trabalho. É preciso mais – deve ser fruto de contrapartida do empregado no cumprimento das obrigações assumidas no âmbito do contrato de trabalho.

Nas dobras da onerosidade, a habitualidade, entendida como a atitude inequívoca das partes apta a gerar a expectativa no empregado do recebimento da parcela, e a obrigatoriedade de sua entrega pelo empregador, completam as etapas de correspondência entre vantagem econômica e remuneração.
Exercendo sua atividade hermenêutica sob a ótica fiscal, em reiterados julgamentos, o Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (CARF) manifestou entendimento ampliativo acerca da natureza remuneratória ou não das parcelas pagas pelos contribuintes a seus empregados.

Fora do âmbito das verbas eminentemente indenizatórias, ou seja, cujo pagamento evidencia uma recomposição patrimonial ao empregado – cuja análise pouca controvérsia tem causado –, o tribunal administrativo ainda apresenta divergências e cria distorções ao apreciar a incidência das contribuições previdenciárias sobre vantagens econômicas desvinculadas das obrigações a cargo do empregado e, portanto, sem caráter contraprestativo.

Exemplo claro desse alargamento conceitual – e, ao nosso ver, equivocado – é refletido em decisões que sustentam a incidência de contribuições previdenciárias sobre o pagamento a cargo da empresa nos dias que antecedem o auxílio-doença, lastreando a tributação no fato de tratar-se de típica hipótese de interrupção do contrato de trabalho, razão pela qual, a despeito de inexistir prestação de serviço, há remuneração e, havendo remuneração paga, devida ou creditada, há incidência de contribuições previdenciárias (Acórdão nº 2302-003.512 – 3ª Câmara da 2ª Turma

Ordinária da 2ª Seção de Julgamentos, Sessão de 02 de dezembro de 2014).

Também o tratamento conferido aos bônus de contratação (Acórdão nº 2301004.357) e ao exercício das opções de compras de ação em planos destock option (2301-004.138) são reflexos nítidos dessa ampliação.

Como se infere das fundamentações adotadas, a análise da natureza remuneratória empreendida pelo Conselho (e sinalizada pelo STF) se pauta pela vinculação objetiva da vantagem econômica ao contrato de trabalho.

Em outras palavras, excepcionando-se as verbas indenizatórias, seria remuneração todo valor percebido em razão do contrato de trabalho, atribuindo-se importância secundária, ou nenhuma, à averiguação da contraprestatividade. Tal conclusão resulta da precipitada conclusão segundo a qual, sendo oneroso o contrato de trabalho, presume-se remuneração toda vantagem econômica recebida pelo empregado.
Sob a bandeira de modernização do conceito de salário, as decisões apontadas sublimaram uma noção civilista da remuneração e inverteram a prioridade conferida pelo direito do trabalho à onerosidade. A parcela é ou não remuneratória porque devida em decorrência da contratação, e não porque inserida no sinalagma prestação de serviço – e – contraprestação.

No Judiciário a questão não é menos tormentosa. Além dos extensos debates travados nos Tribunais Regionais e no Superior Tribunal de Justiça, em recente sessão plenária os Ministros do Supremo Tribunal Federal indicaram que poderão adotar entendimento nessa mesma linha.

No início do julgamento do RE nº 593.068, com reconhecida repercussão geral, em que se discute a exigibilidade da contribuição previdenciária incidente sobre dicionais e gratificações temporárias no regime previdenciário do servidor público federal, os Ministros Roberto Barroso e Rosa Weber afirmaram oralmente sua orientação de que o terço constitucional de férias, cuja tributação foi rechaçada pelo STJ ao apreciar o REsp nº 1.230.957/RS sob o rito dos recursos repetitivos, teria natureza remuneratória.

Assim, apesar de terem votado favoravelmente aos servidores, de modo a não tributar tais verbas por não se incorporarem aos seus benefícios, durante os debates consignaram expressamente que o chamado terço constitucional integra a remuneração, mesmo reconhecendo a existência de julgados da Corte Suprema em sentido contrário. A título informativo,o julgamento do RE não foi concluído.

Tais manifestações, orientadas por uma interpretação genérica e ampliativa de remuneração, caminham em sentido oposto ao dos novos modelos de relação de trabalho. Em lugar de acompanhar as novas estruturas sociais, o direito interpretado regride e impõe às novas modalidades de vantagem econômica tratamento que torna desinteressante a adoção, pelo empregador, de formas de estímulo ao desenvolvimento profissional, reconhecimento e retenção de talentos, criação de planos de carreira e investimento no empregado, por representarem, na prática, aumento dos custos de produção.

* Nelson Mannrich é Mestre, Doutor e Livre-docente. Professor titular da USP. Advogado, sócio do Mannrich, Senra e Vasconcelos Advogados.
* Breno Ferreira Martins Vasconcelos é Mestre. Professor da Escola de Direito da FGV-SP. Advogado, sócio do Mannrich, Senra e Vasconcelos Advogados.