As sete falácias sobre o CARF (JOTA)
16 de junho de 2015Por Breno Ferreira Martins Vasconcelos, Professor da FGV Direito SP, Membro do Comitê Deliberativo do CARF, do Núcleo de Estudos Fiscais da FGV, e Sócio do escritório Mannrich, Senra e Vasconcelos Advogados
Nos últimos dois meses, o Conselho Administrativo de Recursos Fiscais, tribunal administrativo vinculado ao Ministério da Fazenda, até pouco tempo um órgão que colecionava elogios pela qualidade técnica de suas decisões, saiu dos manuais de Direito Tributário e foi para as páginas policiais dos principais veículos de comunicação.
Motivo: a Zelotes, uma robusta operação da Polícia Federal que identificou uma suposta rede de manipulação de decisões no Conselho, escancarando a alegada prática de advocacia administrativa, tráfico de influência e corrupção nos julgamentos.
Na sequência da deflagração da operação, uma sucessão de entrevistas, artigos e matérias foi publicada na mídia e, a passos largos, criou-se uma falsa, ou ao menos enviesada, narrativa sobre o funcionamento do CARF que, somada ao sigilo do processo penal – que, paradoxalmente, em vez de conceder o benefício da inocência, lança suspeita sobre a idoneidade de todos os conselheiros –, pautaram duas decisões cruciais para o futuro do Conselho: a edição do Decreto nº 8.441, que instituiu a remuneração para conselheiros representantes dos contribuintes, e o acórdão do Conselho Federal da OAB, que entendeu serem absolutamente incompatíveis a atividade de conselheiro e a advocacia.
Assim, como informou o Presidente do CARF em audiência na CPI instaurada no Senado Federal, após essas duas decisões, 80% dos conselheiros representantes dos contribuintes renunciaram ao mandato, esvaziando o Conselho e pondo em xeque a paridade prevista em lei na composição do órgão de julgamento.
A proposta deste artigo é rever a narrativa predominante sobre o que era o CARF, e, quem sabe, contribuir para as futuras decisões sobre os rumos do Conselho. Todas as falácias, abaixo transcritas entre aspas, foram extraídas de matérias e entrevistas publicadas a respeito do CARF nas últimas semanas.
Primeira falácia
“A moralização do CARF depende do fim da estrutura paritária.”
Não ignoro a crítica existente sobre a composição paritária do Conselho, isto é, metade de cada turma de julgamento é formada por conselheiros representantes da Fazenda Nacional e outra metade composta por representantes das confederações e centrais sindicais. O potencial conflito de interesses na atuação dos conselheiros (e veja bem, de todos os conselheiros, fazendários e contribuintes) é uma preocupação justa e, portanto, deveria ser mais bem regulada. A sugestão, publicada em coautoria com os professores Eurico Marcos Diniz de Santi e Daniel Souza Santiago da Silva, era a de trazer transparência à atuação dos conselheiros, o que reduziria o risco de conflitos.
Atrelar a moralização do Conselho ao fim da paridade é uma perfeita falácia do falso dilema ou falsa dicotomia: apresentar dois estados alternativos como sendo as únicas possibilidades quando, na verdade, existem mais.
A moralização do CARF depende exclusivamente de indivíduos, que estariam sujeitos ao controle social caso o Conselho fosse mais transparente. A paridade era provavelmente a grande virtude do CARF, que, por reunir conselheiros com diferentes formações acadêmicas e profissionais, em constante exercício de debate e ponderação, proferia decisões técnicas e equilibradas.
Segunda falácia
“Para ganhar no CARF, bastava corromper um conselheiro representante da Fazenda, pois os três votos dos conselheiros representantes dos contribuintes eram garantidos.”
A pesquisa empírica nas Faculdades de Direito no Brasil ainda engatinha – com honrosas exceções –, e essa deficiência permitiu que uma afirmação sem fundamento científico ganhasse força e orientasse os debates e decisões políticas, afinal, como provar não ser verdade que os conselheiros representantes dos contribuintes votavam sempre em favor dos contribuintes? A prova, evidentemente, dependia de levantamento estatístico, não apenas de achismos.
Assim, a falácia do apelo à ignorância (argumentum ad ignorantiam) prevaleceu como verdade: concluo que algo é verdadeiro porque ninguém provou ser falso.
A prova de que essa afirmação era mais uma falácia, porém, foi tardia. Há quase duas semanas, a Associação Brasileira de Jurimetria divulgou os resultados do mais completo estudo estatístico das decisões proferidas pelo CARF entre 2004 e 2013 e de um estudo segregado para 2014. Os resultados são surpreendentes: em 2014, somente 4,85% das decisões foram tomadas pelo voto de qualidade, ou seja, situações em que se pressupõe o empate entre as representações. Além disso, de 181.712 decisões analisadas entre 2004 e 2013, 46,8% dos acórdãos relatados por conselheiros representantes dos contribuintes foram em desfavor do contribuinte, e apenas 35,5%, favoráveis. Outros 17,7% foram parcialmente favoráveis. A proporção parece fulminar a falácia do “voto garantido” em favor do contribuinte.
Terceira falácia
“Os julgadores também atuavam como advogados dos contribuintes.”
Argumento utilizado para desqualificar a atuação de conselheiros representantes dos contribuintes que não se desincompatibilizaram da advocacia, vale-se de uma situação aparentemente específica e isolada para concluir pelo todo.
Não é porque alguns julgadores supostamente praticavam crimes de advocacia administrativa e tráfico de influência que todos os conselheiros faziam o mesmo. A inconsistência do argumento é uma falha de composição lógica, ou, como se diz, “tomar o todo pela parte”.
O Regimento Interno do CARF previa regras claras de impedimento (artigo 42 do Anexo II), suspeição (artigo 43 do Anexo II) e incompatibilidade (artigo 45, XIV do Anexo II), todos puníveis com perda de mandato.
Em outras palavras, o conselheiro que atuou como advogado de contribuintes perante o CARF violou não só normas do direito penal, mas o próprio Regimento do Conselho.
Quarta falácia
“É ingênuo pensar que alguém trabalhará sem remuneração e não cometerá fraudes.”
A afirmação, dirigida exclusivamente aos conselheiros representantes dos contribuintes antes da edição do Decreto nº 8.441/15, pode ser assim interpretada: insinua-se que, por não serem remunerados para o exercício da função julgadora, o único incentivo para que profissionais da iniciativa privada se dedicassem à função pública como conselheiros do CARF seria o de terem retorno financeiro imediato no exercício do mandato.
Ignora, porém, um aspecto imanente à natureza humana: nem todas as conquistas pessoais são redutíveis à lógica financeira. É possível viver com menos e ser mais feliz. A satisfação pessoal está muito mais relacionada à expectativa (e à sua realização) que ao tamanho da poupança no banco. Prova disso são os milhares de advogados bem-sucedidos que se dedicam também a lecionar em faculdades de Direito ou participar de órgãos representativos sem perceber remuneração ou mediante remuneração simbólica.
Mas não é só. Mesmo que a redução a essa lógica financeira fosse devida, haveria um significativo contraponto à suspeita lançada: é evidente que o exercício de mandato como conselheiro traz ganhos substanciais à formação profissional do indivíduo e, consequentemente, em última análise, ganhos financeiros ao conselheiro quando este retornar à atividade exclusiva como advogado. A ideia, sem hipocrisia, é evidente: um advogado que já foi julgador no CARF será normalmente avaliado como bem preparado para defender um cliente cujo processo será julgado naquele tribunal.
Quinta falácia
“Só os grandes contribuintes ganham no CARF.”
No contexto das matérias publicadas após os desdobramentos da Zelotes, esta afirmação foi repetida algumas vezes, atribuindo à capacidade financeira dos contribuintes a sua chance de vitória no CARF, ou seja, o poder econômico do contribuinte seria o único fator a determinar sua sorte, o que parece insinuar que tal poder seria destinado a corromper os conselheiros.
A falácia da causa falsa (non sequitur) salta aos olhos. Apenas porque dois fatores eventualmente coincidem (ter dinheiro e vencer) não significa que, necessariamente, um é causa do outro. Ou seja, não é porque os grandes contribuintes supostamente vencem mais que os pequenos, que a causa para tal constatação é a corrupção dos julgadores.
A prática prova que, normalmente, os grandes contribuintes investem mais em capacitação de seus profissionais, adequação de procedimentos internos às exigências legais, formalização e arquivo de contratos, notas fiscais e documentos, contratação prévia de pareceres jurídicos e outras medidas para se conformarem à complexa legislação tributária. Todos esses fatores não podem ser ignorados para se investigar os principais fatores que contribuem para a vitória de um contribuinte no contencioso administrativo.
Sexta falácia
“Enquanto o Carf não julga os processos, a Fazenda não pode cobrar os débitos.”
Segundo o site do Conselho, em março deste ano os processos na fila para julgamento alcançavam a cifra de 531 bilhões de reais. O valor é imenso, especialmente em um país com tanta carência social e estrutural, mas não pode ser visto como um crédito que já pertence à União, sendo o CARF um obstáculo para o pote de ouro. Pelo contrário, nosso sistema de contencioso fiscal pouco colaborativo incentiva a geração de autuações manifestamente ilegais, muitas vezes contrárias a entendimentos consolidados nos tribunais judiciais. Como lembra Eurico de Santi, o fiscal, na dúvida, “lança para ver no que vai dar”, originando a chamada indústria do contencioso.
A falácia aqui combatida é chamada de argumento ad auditores, normalmente lançado quando uma pessoa culta se apresenta a um auditório leigo. Assim, para que a nulidade do argumento seja esclarecida, seu adversário teria que recorrer a fundamentos científicos, mas raramente se encontra um auditório interessado em grandes digressões (SCHOPENHAUER).
Sétima falácia
“O CARF é inútil, pois já existem as Delegacias Regionais de Julgamento.”
As DRJ são órgãos vinculados à Receita Federal e responsáveis pelo julgamento, em primeira instância, de processos administrativos de determinação e exigência de créditos tributários.
A criação das DRJ foi um avanço para a garantia dos direitos dos contribuintes, pois evita que a autoridade que lançou o crédito seja a mesma que julgará a defesa do contribuinte.
Suas sessões de julgamento, porém, não são abertas ao público e não há previsão de realização de sustentação oral pelos procuradores do contribuinte.
Ainda que essas carências fossem supridas, as turmas de uma DRJ são compostas exclusivamente por três auditores fiscais designados para a função julgadora, ou seja, com experiência profissional moldada na fiscalização e autuação de contribuintes.
A estrutura pensada pelo legislador com a existência de pelo menos duas instâncias de julgamento, DRJ e CARF, se justifica pela necessidade de realizar efetivo controle de legalidade dos lançamentos tributários, o que garante segurança jurídica aos contribuintes e a redução de contencioso judicial (custo do Estado).
A extinção do CARF encontra óbice insuperável no texto constitucional, que garante aos litigantes a ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes. A garantia de recurso pressupõe a existência de uma instância revisional.
A afirmação de que o CARF é inútil redunda em verdadeira petição de princípio, pois pretende demonstrar uma tese partindo do pressuposto de que ela já é válida. Ou seja, o CARF seria inútil porque o controle de legalidade realizado pelas DRJ seria suficiente.
Aliás, o controle exercido pelo CARF como verdadeira instância revisora atua não apenas em favor do contribuinte, mas também para a garantia dos lançamentos. Mais uma vez, a estatística nos socorre. Segundo o estudo da Associação Brasileira de Jurimetria, quase 30% dos recursos de ofício julgados pelo CARF foram julgados procedentes. Isso quer dizer que o CARF, no seu exercício independente de julgamento, reverteu, em favor do fisco, decisões proferidas pelas DRJ que haviam cancelado o lançamento.
Conclusão
O CARF, em seu papel de instância revisora no controle de legalidade dos atos administrativos de lançamento, tem uma importância que transcende a mera (mas fundamental) oportunidade dada aos contribuintes de verem seus argumentos analisados por julgadores técnicos e reunidos em colegiado paritário.
O Conselho tem relevância central na garantia de segurança jurídica aos contribuintes diante de um sistema normativo tributário altamente complexo e pessimamente estruturado: ao proferir suas decisões, lança luz sobre a melhor interpretação a ser dada a esse emaranhado de normas, e aos poucos estabiliza as relações entre fisco e contribuinte.
Reduz também o custo do Estado, pois diminui o curso de créditos ilíquidos e incertos rumo ao já abarrotado Poder Judiciário.
Um CARF forte, transparente e independente é um objetivo a ser conquistado, não atacado. Um debate intelectualmente honesto e republicano é, portanto, o melhor caminho.
* Artigo produzido no âmbito das pesquisas desenvolvidas no Núcleo de Estudos Fiscais (NEF) da FGV Direito SP. As opiniões emitidas são de responsabilidade exclusiva de seu autor.