“Um museu de grandes novidades”. Essa frase, imortalizada em O Tempo não pára, da banda Barão Vermelho, serve para ilustrar o ataque frontal que o McDonald’s está sofrendo quanto ao seu clássico produto Mc Lanche Feliz. A despeito do questionamento em efeito pendular que é feito a respeito dessa iniciativa da cadeia de restaurantes (já foi acusado de ser anticoncorrencial, de contribuir para a obesidade, de se aproveitar da infância), é espantoso perceber a repercussão – não exatamente na sociedade, mas, sim, nas plataformas de mídia – da recente contra campanha ativista Abusivo tudo isso. Segundo a lógica da contra campanha, motivada pela ação cruzada entre um consumidor e a dita ONG, as pessoas seriam vítimas de uma publicidade que estimula crianças a colecionar brinquedos vendidos em conjunto com alimentos de baixo teor nutricional. De acordo com o consumidor autor da reclamação ao Ministério Público, inclusive, ele e seus filhos seriam as vítimas dessa publicidade, eles, que podiam comprar os brinquedos do lanche. Mas – indagou o consumidor – e o pobre consumidor que não podia comprar o produto? Isso motivou a ONG a iniciar a dita campanha, conclamando a assinaturas em uma petição online para ser encaminhada à Secretaria Nacional do Consumidor, levando argumentos para acabar com o McLanche Feliz.
Sem adentrar no grave aspecto marcário da contra campanha, Abusivo tudo isso se dá no contexto do debate a respeito da legalidade de publicidade comercial de produtos e serviços destinados ao consumo de crianças e adolescentes. O assunto em si é digno de discussão e preocupação, tanto aqui como ao redor do mundo, em que os regramentos sobre esse tipo de comunicação comercial preocupam-se com o peculiar estado de desenvolvimento da criança. Assim é que publicidade comercial não pode ilustrar crianças e adolescentes em situação de risco, nem aparentar que o consumo do produto ou serviço implicará em favorecimento para quem os consome ou desvantagem para que não o faz, nem, ainda, vocalizar apelo imperativo ou sugestão explícita de consumo, nem pode desmerecer valores sociais, muito menos, como legalmente regulado em solo nacional, abusar da inexperiência e deficiência de julgamento típicos de crianças. Com efeito, o terreno aqui apresentado é o da publicidade ética. O problema começa a surgir quando é apresentada a tese de que qualquer publicidade comercial de itens consumidos por crianças de idade é abstratamente abusiva, porquanto crianças são incapazes de perceber o caráter persuasivo inerente a qualquer publicidade. O que está por trás da contra campanha é, precisamente, essa tese, que, ressalto, não tem lugar na ordem constitucional, sobretudo na lógica das liberdades públicas.
Alia-se ao discurso da vedação desse tipo de publicidade o fato de que os alimentos componentes do kit vendido pelo McDonald’s possuem significativos índices de açúcar, sal e gordura, os vilões do mundo moderno. Junte-se esses dois elementos – a denominada publicidade infantil com a venda de produtos HFSS (high in fat, salt and sugar) – e aí o ativismo atuará incisivamente em prol da extinção da iniciativa respectiva. Afinal, as crianças têm de ser protegidas dos apelos mercadológicos que levam ao consumismo e, assim, à violência, ao desrespeito ao meio ambiente e ao estresse familiar, e a sociedade, como um todo, dos alimentos de baixo teor nutricional – isso, de acordo com as teses defendidas na contra campanha.
Os motivos podem até parecer bons: quem seria inconsequente de defender que a criança não precisa de atenção, carinho, cuidado e educação, ou que a alimentação equilibrada é dispensável para uma vida melhor? Ninguém, nem mesmo marcas. Portanto, cuidado com o fácil, raso e sedutor discurso da tutela das crianças e do expurgo dos alimentos ricos em sal, açúcar e gordura. Não se trata disso: não pode se perder de vista que o discurso da contra campanha é proibitivo: pretende obter dos poderes públicos o banimento do McLanche Feliz, uma regulação que proíba o restaurante de vender o kit. Essa característica proibitiva da contra campanha é muito pouco explorada, muito porque estrategicamente obscurecida pelos “nobres” motivos que constituem o que seria o racional da contra campanha.
O que é preocupante nisso, para fins deste artigo, não é exatamente o fato de que hábitos alimentares de crianças não poderem ser avaliados linearmente, na base da canetada ou de pesquisas de percepção – de fato, são fruto de complexa estrutura montada a partir de sua concepção. Nem preocupa aqui o fato de que o consumo de um kit em que há um hambúrguer ou nuggets de quando em vez não fará mal a ninguém. Nem mesmo o fato de que o discurso contra a publicidade é o mais precário possível, desviando o verdadeiro foco dos problemas que pretende atacar, é razão de abordagem deste arrazoado. O que consterna é, precisamente, o velho autoritarismo, ainda que de roupa nova e vestido sedutor.
O McDonald’s, que vende lanches e brinquedos, juntos e separadamente (nessa linha, o Kinder Ovo, que vende chocolate e brinquedos, também já foi alvo da militância), está sendo alvo de uma estratégia que mediatamente não se resume a ele, mas que atinge empresas que comercializam produtos lícitos em uma economia de mercado. Essas empresas empreenderam para oferecer produtos e serviços a um público que precisa e consome tais bens – no caso, as crianças. Todavia, por anos essas sociedades vem sendo vítimas de um ativismo que, arvorando-se da aura do conhecimento acima mesmo dos próprios pais e responsáveis que a Constituição fez questão de impor o ônus de dirigir e educar, atreve-se a ditar o que é melhor e o que é pior para os filhos dos outros. Essa mesma corrente de pensamento pede classificação indicativa obrigatória de programas e espetáculos sob pena de sanção, rotulagem assustadora de alimentos, nos moldes shockadvertising dos maços de cigarro (atenção: alimentos não são cigarros), enfim, tudo o que consideram ser males de uma sociedade de pessoas que não tem discernimento ou competência de exercer suas próprias escolhas. Isso é típico de regimes autoritários, autocráticos, em que poucos decidem o destino de muitos. Os motivos de muitas decisões autoritárias ao longo da história sempre se apresentaram como bons – isso, de acordo com seus patrocinadores, como no caso da Igreja Católica e seu índice de livros proibidos – tudo para preservar a doutrina e os dogmas, ou, até mesmo, a maioria, como no caso da Alemanha nacional-socialista – que tinha como fito enaltecer uma super-raça e o expansionismo digno de abrigá-la.
O autoritarismo é a antítese da liberdade.
A Constituição consagrou a última, abominando o primeiro. Os exemplos são inúmeros e, no que toca especialmente às liberdade de iniciativa e de expressão publicitária, foi cuidadosa ao estabelecer, em si mesma, os limites respectivos: a livre iniciativa deve respeitar os valores sociais do trabalho, por exemplo, e a liberdade de expressão publicitária pode ser restrita no caso de ofertas de tabaco, bebidas alcoólicas, terapias, tratamentos e agrotóxicos. Todo o resto é ilação e, no caso da publicidade de produtos e serviços destinados a crianças e adolescentes, construção de uma narrativa até certo ponto bem sucedida, mas que não pode sobreviver à necessidade de se demonstrar, cabalmente, prejuízo e abuso na expressão aptos a limitá-la – o que, parece, não é o caso do McLanche Feliz.
Qual é exatamente o abuso em tela? Vender brinquedo junto com hambúrguer? Isso estimula crianças a comer o alimento alegadamente não saudável (insisto: com educação alimentar adequada ninguém se preocupará em comer um hambúrguer, mas eles preferem pedir a proibição da publicidade)? Se o problema é esse, porque não se proíbe a venda do hambúrguer? Será abuso a mera oferta de brinquedo junto com o sanduíche, ou abuso será o McDonald’s alegar que sem o brinquedo a criança não será feliz? Estamos, em geral, adotando a perigosa tese do abuso em abstrato no caso de publicidade de produtos e serviços voltados a crianças, e o perigo reside precisamente em tolher a liberdade de uma modalidade de discurso e de uma espécie de iniciativa sem justa causa. Estabelecer que certa modalidade de discurso de toda uma categoria é abusiva em abstrato é censura. A tese de que o artigo 37, §2º do CDC dá guarida ao entendimento de que toda a publicidade dessa espécie é ilegal porquanto abusiva é um acinte.
É preciso lembrar que não existe interpretação elástica quando se restringem direitos fundamentais como a liberdade de anunciar. Quisesse o legislador abstrair a abusividade, tê-lo-ia feito – assim mesmo, de maneira inconstitucional. Não o fez, contudo. Publicidade abusiva será aquela que, no caso concreto, depois de análise detida e respeitado o contraditório, revelar-se passando do limite e aproveitando-se das peculiares condições de inexperiência e deficiência de julgamento da criança. O McLanche Feliz, pela simples razão de sua existência, não pode ser visto como abusivo. E é sempre importante afirmar que a responsabilidade por educar crianças e dos pais e responsáveis, não podendo o Estado ou a sociedade civil retirar desses agentes esse poder que, afinal, advém do jusnaturalismo. Dizer que a publicidade retira a autonomia dos pais e das famílias para decidir o melhor para seus filhos, com todo o respeito, revela a pouca consistência intrínseca do argumento: fosse como aduzem seus defensores, deveria haver massiva publicidade para que bandidos não cometam crimes, com o certo resultado de unânime honestidade. A ideia não sobrevive nem mesmo a essa barata analogia.
As liberdades públicas, tão em questão em nossa sociedade, devem estar sempre vigilantes, já que as ameaças são várias e vêm de todos os lados. No assunto de hoje, não se trata de McDonald’s, sanduíches e brinquedos, trata-se, sim, de lidar com responsabilidade o tema da proteção das crianças frente à publicidade. Proibir nunca. Educar, sempre. De tudo, nosso amor deve ser pelas liberdades, neste mundo em que nosso espaço para realizar obras está cada vez mais limitado